O martírio das carmelitas de Compiègne

Desde que foi composto, no século IX, o hino Veni Creator (oração ao Espírito Santo) nunca deixou de ser ressoado na Igreja em momentos importantes, principalmente na Festa de Pentecostes e no primeiro dia do ano. O Veni Creator é um hino da Igreja Catolica, em honra ao Espírito Santo. 

Com essa oração, em latim, o Papa Leão XIII consagrou o século XX  ao Espírito Santo.

Esta belíssima e poderosa oração marcou também um tocante momento da nossa história moderna: O martírio das carmelitas de Compiègne.

A Revolução Francesa foi palco de inúmeros dramas humanos e sociais. Vários desses dramas, verdadeiras atrocidades, estão relacionados à gilhotina. Calcula-se que 40 mil vítimas foram executadas entre 1792 e 1799. No “período do Terror”, entre 1793 e 1795, constataram-se 15 mil mortes na guilhotina (aproximadamente 625 execuções por mês, mais de 20 por dia). Diante desses números é possível imaginar a distorção que foi causada entre o povo francês, mormente entre o publico que as testemunhava em Paris, palco das maiores execuções na época.

Dentre tais execuções, sucedeu o martírio das Carmelitas de Compiègne. Foi no segundo período do Terror da Revolução Francesa, perpetrado no dia 17 de julho de 1794, no local denominado “Praça do Trono” (Place du Trône Revensé), hoje denominado “Praça da Nação” (Place de la Nation).

O motivo? Porque os revolucionários franceses tinham ódio à religião, tendo esta sido abolida do Estado. Aqueles foram dias marcados pela perseguição religiosa e política, guerras civis, e execuções na guilhotina.. Durante o julgamento das irmãs Carmelitas, ao final do processo, ouviu-se a condenação: “À Morte por fanatismo”. Uma das irmãs, em sua simplicidade, perguntou: – “Senhor Juiz, se faz favor, que quer dizer fanatismo?“. Respondeu o juiz: – “É percentente totalmente à religião“. – “Oh, irmãs!” – retrucou então a religiosa – “Ouvistes, condenam-nos pelo nosso apego à fé. Que felicidade morrer por Jesus Cristo!

O grupo de religiosas carmelitas, lideradas por Madre Teresa de Santo Agostinho, era composto por 16 mulheres: 10 freiras, 1 noviça, 3 irmãs leigas, 2 irmãs rodeiras.

Fizeram-nas sair da prisão da Conciergerie e imediatamente meteram-nas num dos carroções com destino à Praça do Trono, local de execuções onde se encontrava montada uma das guilhotinas.

Pelo caminho, foram cantando hinos religiosos.

Praça do Trono (17 de julho de 1794). Cerca de oito horas da tarde. Sendo verão o céu ainda estava claro e uma multidão comprimia-se em volta da guilhotina, como era comum naquelas épocas tenebrosas. O publico apreciava cada uma das execuções com interesse mórbido e revanchista. Fazia um calor opressor, o que amplificava o odor pestilento e desagradável de sangue.

Oriundos da cidade, surgem dois carroções bastante cheios, o que faz reverberar junto ao público as exclamações de ofensas e ameaças. Entretanto, o alarido do público diminui dando lugar a murmúrios e expressões de espanto. Acontece que, nun dos carroções se vêem várias mulheres de capa branca: são elas as dezesseis irmãs Carmelitas do convento de Compiègne.

Diferente dos demais condenados, não se deixam abater, nem choram ou gritam. Ao contrãrio, trazem o rosto erguido e cantam. Suas posturas eretas e firmes são ainda mais destacadas pelas mãos amarradas às costas. E cantam em latim para o ouvido de todos, Salve Rainha e Te Deum, causando espanto e admiração até ao mais insensível dos que lá formavam o estranho público.

Os carroções pararam ao pé do tablado da guilhotina e se fez o mais absoluto silêncio.

Desembarcam do rude transporte. Por elas aguardam o carrasco e seus dois ajudantes. Uma das irmãs, a mais idosa com 78 anos, precisou ser amparada para desembarcar do carroção. A priora Madre Teresa de Santo Agostinho aproximou-se e pediu ao carrasco que lhes concedesse um breve momento para renovarem seus votos. Sanson, o carrasco, concordou e pediu à Madre que permanecesse por último para que pudesse , diante de sua perceptível calma e liderança, animar cada uma das suas filhas até o fim.

A priora recua até a base da escada, onde se posiciona segurando nas mãos uma estatueta da Virgem Maria com o Menino Jesus ao colo. Uma das filhas, a mais jovem de todas, chamada Constança, ainda é noviça, ajoelha-se diante da Madre e pede-lhe a bênção, lembrando ainda não haver terminado o ofício (as orações) do dia. Com um sorriso, a Madre diz-lhe em consolo: “Vai, minha filha, confiança! Acabarás de rezá-lo no Céu” e dá-lhe a beijar a imagem.

Constança, com toda sua juventude é de uma beleza singular e possui a face e a voz de um anjo na terra, começa a entoar o hino Veni Creator Spiritus[1], sendo acompanhada por todas as demais.
O seu canto é tão tocante que ouve-se uma voz de mulher na multidão: – “Essas boas almas, vejam se não parecem anjos! Pela minha fé, se essas mulheres não forem diretas ao paraíso, é porque o paraíso não existe!

Veni Creator

Constança sobe os degraus, tendo o carrasco Sanson e seus ajudantes habilmente colocado-na em posição debaixo da guilhotina. Ouve-se o ruido seco do baque da lâmina que cai, sendo a cabeça recolhida num saco de couro. Rapidamente o corpo também é recolhido e lançado à carroça funerária.

Uma por uma as freiras se ajoelham diante da priora, beijam a estatueta, pedem-lhe a bênção e permissão para morrer. Quando chega a vez da irmã idosa de 78 anos, os jovens ajudantes do carrasco descem para ajudá-la a vencer os degraus. No que ela lhes diz: “Meus amigos, eu vos perdôo de todo o coração, tal como desejo que Deus me perdoe”.

O canto “Veni Creator” foi-se tornando, porém, cada vez mais débil, à medida que iam caindo as cabeças das pobres irmãs, uma a uma, na guilhotina. Ficou para o fim a Madre Superiora Madeleine-Claudine Ledoine (Madre Teresa de Santo Agostinho); e as suas últimas palavras foram estas: “O amor sempre vencerá, o amor tudo pode“. Eis a palavra exata: não é a violência que tudo pode, é o amor que tudo pode.

Com gesto simples e resoluto, a Madre beija a estatueta e a confia à primeira pessoa que tem ao lado. Essa imagem foi devolvida mais tarde à Ordem e encontra-se hoje no Carmelo de Compiègne, novamente fundado em 1867.

Após tudo terminado, o silêncio é grave. Muitos daqueles que assistiam soluçavam choro baixo e contido. Anos depois ainda experimantavam os ecos da emoção e dos efeitos daquilo que testemunharam.

Os corpos das Carmelitas, assim como os dos demais executados naquela ocasião, foram levados para o antigo convento dos agostinianos do Faubourg de Picpus, lançados em uma fossa comum e cobertos de cal virgem (neste mesmo local foram enterrados 1298 vítimas da Revolução). Hoje ali existe um gramado cercado de arbustos com uma simples cruz de ferro, sendo um lugar de silêncio e oração.

  1. A letra do Hino Veni Creator:

    Em português

    Vinde, Espírito Criador, 
    as nossas almas visitai 
    e enchei os nossos corações 
    com vossos dons celestiais.

    Vós sois chamado o Intercessor, 
    do Deus excelso o dom sem par, 
    a fonte viva, o fogo, o amor, 
    a unção divina e salutar. 

    Sois doador dos sete dons, 
    e sois poder na mão do Pai, 
    por ele prometido a nós, 
    por nós seus feitos proclamais.

    A nossa mente iluminai, 
    os corações enchei de amor, 
    nossa fraqueza encorajai, 
    qual força eterna e protetor. 

    Nosso inimigo repeli, 
    e concedei-nos vossa paz; 
    se pela graça nos guiais, 
    o mal deixamos para trás. 

    Ao Pai e ao Filho Salvador 
    por vós possamos conhecer. 
    Que procedeis do seu amor 
    fazei-nos sempre firmes crer.

    Amém!

    Em latim

    Veni Creator Spiritus,
    Mentes tuorum visita,
    Imple superna gratia,
    Quae tu creasti, pectora.

    Qui diceris Paraclitus,
    Altissimi donum Dei,
    Fons vivus, ignis, caritas,
    Et spiritalis unctio.

    Tu septiformis munere,
    Digitus Paternæ dexteræ,
    Tu rite promissum Patris,
    Sermone ditans guttura.

    Accende lumen sensibus,
    Infunde amorem cordibus,
    Infirma nostri corporis,
    Virtute firmans perpeti.

    Hostem repellas longius,
    Pacemque dones protinus;
    Ductore sic te prævio,
    Vitemus omne noxium.

    Per te sciamus da Patrem
    Noscamus atque Filium;
    Teque utriusque Spiritum
    Credamus omni tempore.

    Amen. ↩︎

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